14 maio, 2005

MESA PARA DOIS

by Lori Peikoff
Los Angeles, Califórnia

Em 1947, minha mãe, Deborah, tinha 21 anos e estudava Literatura Inglesa na Universidade de New York. Ela era linda – impetuosa e introspectiva ao mesmo tempo -, com uma grande paixão por livros e idéias. Lia vorazmente e esperava tornar-se escritora um dia.
Meu pai, Joseph, era um candidato a pintor que se sustentava dando aulas de arte num colégio de West Side. Aos sábados, pintava durante todo o dia, em casa ou no Central Park, e se dava ao luxo de jantar fora. Na noite de sábado em questão, ele escolheu um restaurante das vizinhanças chamado Via Láctea.
Acontece que o Via Láctea era o restaurante predileto de minha mãe e naquele sábado, depois de estudar durante todo o dia, ela foi lá para jantar, levando consigo um exemplar usado de “Grandes Esperanças”, de Dickens. O restaurante estava cheio e ela conseguiu a última mesa, sentou-se para uma noitada - de goulash, vinho tinto e Dickens -, e logo perdeu o contato com o que acontecia ao seu redor.
Dentro de meia hora, o restaurante estava cheio de gente esperando mesa. A recepcionista, esbaforida, perguntou à minha mãe se ela se importaria de dividir a mesa com outra pessoa. Quase sem tirar os olhos do livro, minha mãe concordou.
“Uma vida trágica para o pobre Pip”, disse meu pai quando viu a capa esfarrapada de “Grandes Esperanças”. Minha mãe olhou para ele e naquele momento, ela lembra, viu algo estranhamente familiar nos olhos dele. Anos depois, quando lhe implorei para contar uma vez mais a história, ela suspirou docemente e disse: “Eu me vi nos olhos dele”.
Meu pai, inteiramente cativado pela presença dela, jura até hoje que escutou uma voz interior. “Ela é seu destino”, disse a voz, e imediatamente depois ele sentiu um formigamento que foi da ponta dos pés ao topo da cabeça. O que quer que meus pais tenham visto, ouvido ou sentido naquela noite, ambos entenderam que algo milagroso acontecera.
Tal como dois velhos amigos que se encontram depois de muito tempo, conversaram durante horas. Mais tarde, no final da noite, minha mãe escreveu o número do telefone no lado interno da capa de “Grandes Esperanças” e deu o livro para meu pai. Ele disse adeus, beijando-a delicadamente na testa, e em seguida partiram em direções opostas noite adentro.
Nenhum dos dois conseguiu dormir. Mesmo depois de fechar os olhos, minha mãe só via uma coisa: o rosto de meu pai. E meu pai, que não conseguia parar de pensar nela, ficou acordado a noite inteira, pintando o retrato de minha mãe.
No dia seguinte, domingo, ele foi ao Brooklin visitar seus pais. Levou consigo o livro para ler no metrô, mas estava exausto após a noite insone e começou a sentir sono nos primeiros parágrafos. Então enfiou o livro no bolso do casaco – que pusera sobre o assento ao lado – e fechou os olhos. Só acordou quando o trem parou em Brighton Beach, no outro extremo do Brooklin.
O vagão estava vazio e, quando ele abriu os olhos e procurou suas coisas, o casaco não estava mais lá. Alguém o roubara, junto com o livro. O que significava que o número do telefone de minha mãe também se fora. Em desespero, ele procurou por todo o trem, olhando embaixo de cada assento, não somente em seu vagão, mas nos vagões anterior e posterior. No entusiasmo do encontro com Deborah, Joseph, estupidamente esquecera de lhe perguntar o sobrenome. O número do telefone era sua única ligação com ela.
A chamada que minha mãe esperava nunca aconteceu. Meu pai procurou-a várias vezes no Departamento de Inglês da universidade, mas jamais a encontrou. O destino traíra os dois.
O que parecera inevitável na primeira noite no restaurante aparentemente não era para acontecer.
Naquele verão, ambos viajaram para a Europa. Minha mãe foi para a Inglaterra fazer cursos de literatura em Oxford; meu pai foi para Paris pintar. No final de julho, com uma folga de três dias nos estudos, minha mãe voou até Paris, decidida a absorver o máximo de cultura que pudesse em 72 horas.
Levou consigo um novo exemplar de “Grandes Esperanças”. Depois da triste história com meu pai, não tivera coragem de lê-lo, mas então, ao sentar-se num restaurante cheio depois de um longo dia de passeios turísticos, ela abriu a primeira página do romance e começou a pensar nele de novo.
Após ler algumas frases, foi interrompida pelo maître, que lhe perguntou, primeiro em francês, depois em inglês macarrônico, se ela se importaria de dividir a mesa. Minha mãe concordou e retornou a leitura. Um instante depois, ela escutou uma voz familiar.
“Uma vida trágica para o pobre Pip”, disse a voz, e quando ela ergueu os olhos, lá estava ele de novo.

Extraído do livro “Achei que meu pai fosse Deus – e outras histórias verdadeiras da vida americana”, organizado por Paul Auster (Companhia das Letras).
A história desse livro já é, em si mesma, uma narrativa surpreendente. Convidado a fazer um programa mensal numa rede de emisssoras públicas dos Estados Unidos, Paul Auster resolveu pedir aos ouvintes que mandassem suas histórias para serem lidas no ar. Os relatos tinham que ser verdadeiros e curtos, mas não havia restrição quanto ao tema e estilo. (...). Histórias verdadeiras que parecem ficção. Histórias que se recusam a obedecer ao senso comum. (...). A resposta foi espantosa: em um ano, recebeu mais de quatro mil textos. Impossível ler todos no programa como prometido aos ouvintes. A solução foi organizar uma antologia com parte das histórias – e essa que vocês acabaram de ler é uma delas.

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