20 maio, 2005

E N C O N T R O S






Paul Auster é, no momento, o meu autor predileto (meu e de milhares de pessoas, claro!). Sua linguagem crua e rebuscada, cheia de simplicidade, nos trás à tona de nós mesmos, de nossos conflitos, nossas dúvidas e certezas. O prazer de ler suas obras permeia cada frase, cada situação, cada labirinto cheio de mistério que nos arrasta até o final da narrativa.




Dele já li “A trilogia de Nova York” e “Noite do oráculo" do qual tirei o texto abaixo, que ele inseriu no rodapé das páginas, como se fossem notas do “autor” descrevendo acontecimentos de sua vida pessoal.




Atualmente estou lendo A invenção da solidão – uma espécie de autobiografia onde ele reencontra a figura paterna e revisita a infância após a morte do pai – e “Pensei que meu pai fosse Deus”, uma coletânea de pequenas histórias escritas por cidadãos americanos comuns (leia mais detalhes no post “Mesa para dois”, do dia 14 de Maio 2005).


"Era janeiro de 1979, não muito depois de eu ter terminado meu segundo romance. Meu primeiro romance e um livro de contos anterior haviam sido publicados por uma pequena editora em São Francisco, mas então eu havia me mudado para uma casa maior e mais comercial em Nova York, a Holst & McDermott. Umas duas semanas depois de eu ter assinado o contrato, entrei na sala para ver minha editora e em algum ponto de nossa conversa começamos a discutir idéias para a capa do livro. Foi então que Betty Stolowitz pegou o telefone de sua mesa e me disse: "Por que não chamamos Grace aqui e vemos o que ela acha?" Grace trabalhava no departamento de arte da Holst & McDermott e tinha recebido a tarefa de desenhar a sobrecapa de Auto-retrato com irmão imaginário - que era como se chamava o meu livrinho de caprichos, divagações e tristezas de pesadelo.

Betty e eu continuamos conversando mais uns três ou quatro minutos, e então Grace Tebbets entrou na sala. Ficou ali durante uns quinze minutos e, quando saiu e voltou para sua sala, eu estava apaixonado por ela. Foi assim abrupto, conclusivo, inesperado. Tinha lido sobre essas coisas em romances, mas sempre achei que os autores exageravam no poder de um primeiro olhar - aquele momento incessantemente narrado em que um homem olha dentro dos olhos de sua amada pela primeira vez. Para um pessimista nato como eu, era uma experiência absolutamente chocante. Senti que estava sendo jogado de volta ao mundo dos trovadores, revivendo alguma passagem do capítulo inicial de Vita Nuova (...quando a gloriosa Senhora dos meus pensamentos tornou-se manifesta aos meus olhos), habitando aqueles velhos tropos de mil sonetos de amor esquecidos. Queimava. Ansiava. Definhava. Emudeci. E tudo isso me aconteceu no mais sem graça dos lugares, debaixo do brilho fluorescente de uma sala de escritório do final do século XX - o último lugar da terra onde se pensaria tropeçar na paixão da vida de alguém.


Não há como explicar um acontecimento desses, não há razão objetiva para explicar por que nos apaixonamos por uma pessoa e não por outra. Grace era uma mulher bonita, mas mesmo naqueles primeiros segundos tumultuosos de nosso primeiro encontro, quando apertei sua mão e observei enquanto se acomodava em uma cadeira junta à mesa de Betty, pude ver que não era excessivamente bonita, não como uma daquelas deusas estrelas de cinema que deixam a pessoa tonta com sua perfeição. Não há dúvida de que era atraente, marcante, agradável de se olhar (seja qual for a definição desses termos), mas mesmo sendo feroz minha atração, eu sabia que era mais do que apenas atração física, que o sonho que eu estava começando a sonhar era mais que uma onda momentânea de desejo animal. Grace me pareceu inteligente, mas à medida que a reunião foi rolando e a ouvi falar de suas idéias para a capa, compreendi que não era uma pessoa tremendamente articulada (hesitava muitas vezes entre idéias, limitava seu vocabulário a palavras pequenas, funcionais, parecia não ter nenhum dom de abstração), e nada do que disse aquela tarde foi particularmente brilhante ou memorável. Além de fazer algumas observações simpáticas sobre meu livro, não deu nenhum sinal que sugerisse estar mesmo que remotamente interessada em mim. E, no entanto, ali estava eu em um estado de máximo tormento - queimando e ansiando e definhando, um homem colhido nas malhas do amor.
Ela media um metro e setenta e pesava sessenta e dois quilos. Pescoço esguio, braços longos e dedos longos, pele clara e cabelo curto, louro opaco. Aquele cabelo, percebi depois, tinha alguma semelhança com o cabelo dos desenhos do herói de O pequeno príncipe - tufos espetados lisos e cacheados - e talvez a associação enfatizasse a aura um tanto andrógina que Grace projetava. As roupas masculinas que estava usando aquela tarde devem ter desempenhado seu papel ao criar a imagem também: jeans preto, camiseta branca e uma jaqueta de algodão azul-clara. Uns cinco minutos depois de começada a reunião, tirou a jaqueta e arrumou nas costas da cadeira. Vi então os seus braços, aqueles braços dela, longos, lisos, infinitamente femininos, e entendi que não haveria descanso para mim enquanto não conseguisse toca-los, enquanto não tivesse o direito de pôr as mãos em seu corpo e desliza-las por sua pele nua.
Mas eu queria ir mais fundo que o corpo de Grace, mais fundo que os fatos incidentais de sua pessoa física. Corpos contam, claro - contam mais do que estamos dispostos a admitir - mas não nos apaixonamos por corpos, nos apaixonamos um pelo outro, e mesmo que muita coisa se limite a carne e ossos, há também coisas que não. Todos sabemos disso, mas no minuto em que vamos além de um catálogo de características e aparências superfíciais, as palavras começam a nos faltar, a se desmanchar em confusões místicas, em nebulosas e irreais metáforas. Alguns dizem que é a chama do ser. Outros, a faísca interna ou a luz interior do eu. Outros ainda se referem a isso como o fogo da singularidade. Os termos são sempre oriundos de imagens de calor e luz, e aquela força, aquela essência da vida a que às vezes nos referimos como alma sempre se comunica a outra pessoa pelos olhos. Sem dúvida os poetas estavam certos em insistir nesse ponto. O mistério do desejo começa quando se olha nos olhos da amada, porque só aí é que se pode captar um lampejo do que é aquela pessoa.
Os olhos de Grace eram azuis. Um azul manchado de traços de cinza, talvez um pouco de castanho, talvez um pouco de avelã também, para contrastar. Eram olhos complexos, olhos que mudavam de cor segundo a intensidade e o tom da luz que batia neles em determinado momento, e a primeira vez que a vi aquele dia na sala de Betty, me ocorreu que eu nunca havia encontrado uma mulher que irradiasse tanta compostura, tanta traquilidade de porte, como se Grace, que ainda não tinha vinte e sete anos na época, já tivesse passado para algum estado de ser superior ao resto de nós. Não pretendo insinuar que havia nela algo contido, que pairava acima das circunstâncias com um beatífico olhar de condescendência ou indiferença. Ao contrário, ela esteve bem animada durante toda a reunião, riu com prontidão, sorriu, disse todas as coisas adequadas e fez todos os gestos adequados, mas por baixo do compromisso profissional com as idéias que Betty e eu estávamos lhe propondo, senti uma surpreendente ausência de conflito interno, um equilíbrio mental que parecia isola-la dos conflitos e agressões da vida moderna: insegurança, inveja, sarcasmo, a necessidade de julgar ou diminuir os outros, a insuportável e escaldante dor da ambição pessoal. Grace era jovem, mas tinha uma alma velha e calejada, e sentado junto dela naquele primeiro dia no escritório da Holst & McDermott, olhando em seus olhos e estudando os contornos de seu corpo magro e anguloso, foi por isso que me apaixonei: pela sensação de calma que a envolvia, o silêncio radiante que queimava ali dentro."

SITE DO AUTOR: http://www.paulauster.co.uk/

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